terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O mês de novembro foi marcado por episódios de violência e pânico na cidade maravilhosa. Notícias de que veículos estavam sendo incendiados em diversos pontos do Rio de Janeiro, fizeram a atenção nacional voltar-se ao drama carioca que estava apenas por começar. Em resposta aos ataques a carros e a situação de instabilidade gerada, o governo fluminense iniciou uma operação de grande porte, envolvendo as Polícias Civil, Militar e Federal e as Forças Armadas. Houve uma conturbada ocupação de favelas que foi (e ainda é) explorada de forma deveras exaustiva pela mídia, a qual rotulou a situação encontrada no Rio como uma “guerrilha urbana” e passou a tratá-la como uma verdadeira batalha maniqueísta em que, finalmente, houve um histórico triunfo do “bem”.

O Rio vinha enfrentando “arrastões” desde o final do mês de setembro. Mas, aparentemente, tudo começou em 21 de novembro, dia em que foram apontados vários assaltos desse tipo pela cidade. Nos dias seguintes, carros foram incendiados e cabines da Polícia Militar (PM) foram atacadas. Tais acontecimentos foram entendidos pelo Governo estadual como retaliação à transferência de alguns presos para penitenciárias federais e à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) em parte das favelas, a qual teria resultado na saída de supostos integrantes de quadrilhas de traficantes.

As UPP’s têm sido implantadas desde 2008. A primeira foi instalada na favela Morro Dona Marta, posteriormente, na Cidade de Deus, Batan, Pavão-Pavãozinho, Morro dos Macacos e outras. Totalizando, hoje 35 comunidades têm a presença das UPP’s.

Outras informações deram conta de que duas importantes facções se uniram para enfrentar a polícia – o Comando Vermelho (CV) e Amigos dos Amigos (ADA). Até 2003 a Rocinha, atual reduto e principal fonte de renda do ADA, era controlada pelo CV, que, até os recentes acontecimentos, tinha como “quartéis-generais” o Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro.

Partindo dessas informações, iniciou-se uma megaoperação policial em 18 comunidades cariocas, anunciada amplamente por manchetes de revistas e jornais como uma “guerra contra o tráfico/crime”. Dia após dia, as manobras foram tomando contornos mais ostensivos, à medida que as mais diversas corporações governamentais integravam a operação.

O Brasil viu cenas que até então faziam parte da aclamada produção cinematográfica nacional de José Padilha: o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) entrou em quatro comunidades da Penha com sete “caveirões” e com homens “armados até os dentes”; no dia seguinte a este, carros blindados da Marinha adentraram a favela conhecida como Vila Cruzeiro e “expulsaram” cerca de 200 supostos traficantes de lá.

As imagens da fuga desses homens por uma estrada de terra em direção ao Complexo do Alemão, posteriormente ocupado também, foram exploradas pelas emissoras de TV incessantemente e tidas como um marco histórico, como uma genuína prova da primeira vitória sobre o crime. Não faltou quem defendesse, seja no Twitter, seja em comentários às constantes publicações de sites de notícias, a ação do helicóptero da Polícia contra os fugitivos.

Passada a fase de ocupação, foram tomadas outras providencias, entre as quais está a típica operação “pente fino”, que consiste em revistar todas as casas à procura de possíveis traficantes, armas e drogas. O procedimento tem sido realizado em todas as comunidades ocupadas.

Em balanço divulgado pela PM do Rio na sexta-feira, 03 de dezembro, em 12 dias de confronto, foram apreendidas 518 armas (sendo 200 pistolas, 140 fuzis, 73 revólveres, 35 metralhadoras, 34 espingardas e 18 submetralhadoras), além de granadas e bombas artesanais. Também foi divulgada a apreensão de armamentos mais pesados, como bazucas. O total de drogas apreendidas foi de 34.194 toneladas, sendo 33,8 toneladas de maconha, 313,9 quilos de cocaína, 54 quilos de crack e 1,9 quilo de haxixe, além de 108 litros de cloreto de etila, usado para fazer lança-perfume. O número de presos ficou em 118, com a apreensão de 21 menores. A maior parte das apreensões e prisões ocorreu na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão.

Apesar dos resultados apresentados, há de se fazer algumas ressalvas no que tange a ação policial durante a megaoperação. Em coluna no jornal Folha de S. Paulo, Marcelo Freixo, deputado do Rio de Janeiro pelo PSOL, faz críticas à lógica de guerra intrínseca à segurança pública. O deputado afirma que o atual modelo de enfrentamento que não será eficaz, uma vez que considera uma ingenuidade crer que confrontos armados nas favelas extirparão o crime organizado. Destaca também que para resolver esse problema seria necessário agir nos locais onde o crime nasce e verificar os meios pelos quais armas e drogas chegam às favelas: “É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional”.

Toda a operação realizada pela Polícia para capturar os supostos traficantes, bem como a ocupação das favelas causou uma série de transtornos aos moradores das comunidades. Nos primeiros momentos a população ficou sem saber exatamente o que estava acontecendo, a recomendação era de que permanecessem em suas casas e, dependendo da região, algumas famílias ficaram impedidas de retornar aos seus lares por alguns dias, dado o clima de “guerra declarada” instaurado, com blindados pelas ruas e rajadas de tiros a todo instante.

Mas é inegável que, com esses acontecimentos, a população carioca (nesse caso, mais especificamente os moradores das comunidades ocupadas) teve um momento de aproximação com sua Polícia, após um longo período de mútua desconfiança, quando não de franca hostilidade. Entretanto, vale destacar que, apesar de pesquisas apontarem para uma ampla aprovação da população carioca em relação às ações da polícia, uma série de arbitrariedades e violações aos direitos civis de moradores foi (e ainda é) cometida durante a “pacificação” das comunidades.

No começo do mês de dezembro, foram noticiados abusos nas operações policiais. Alguns moradores alegaram que alguns bens e dinheiro haviam sido levados de suas residências durantes as buscas. Uma moradora chegou a pregar um bilhete na porta de sua casa, avisando que o local já havia sido vistoriado e que pedindo que sua porta não fosse arrombada (foto).

De acordo com a legislação penal, a busca em domicílio é admitida em situações específicas e a entrada policial deve ser estabelecida por mandado judicial, além do consentimento do morador. No caso do Complexo do Alemão, da Vila Cruzeiro e de outras tantas comunidades cariocas, há uma situação, de fato, excepcional, em que toda atividade policial perseguia um fim comum. Todavia, há de se ressaltar que a excepcionalidade momentânea não deve afastar direitos e garantias fundamentais.

Recentemente, a AJD (Associação de Juízes para a Democracia) se manifestou no sentido de atentar para a escalada de violência “tanto estatal quanto privada”. Para o juiz Rubens Casara, conselheiro da ADJ, na tentativa de combater os que violam a lei, o próprio Estado a está violando. Casara considera que o principal problema não é o fato de um ou outro policial praticar abusos nas operações, mas a estrutura que leva a esses tipos de abusos. “O que estimula a ilegalidade é toda uma cultura autoritária, com institutos e práticas que desrespeitam o outro e estão descompromissados com a democracia”, disse.

Até o momento, foram divulgadas apenas as quantidades de presos e de “bandidos” mortos, não foi contabilizado o número de inocentes mortos durante as ações. Faz-se necessário considerar que boa parte das pessoas que moram nas favelas trabalha para sustentar a família, não vivem do tráfico, como estampa a mídia em geral, tratando as comunidades como antro de “bandidagem”. Uma das vítimas foi Rosângela Barbosa, de14 anos. Em momento de revolta, o pai da menina desabafou: “vocês tem que aprender que não é só bandido que mora em favela não. Minha filha foi baleada no peito, enquanto estava no computador. Mais um inocente. Parabéns para vocês. Parabéns”, referindo-se à polícia.

Em analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial, falou-se em “Dia D”, com claro viés maniqueísta, como se depois dessa data o Rio passou a ser uma cidade segura, apta para sediar os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de Futebol, que estão por vir. Mais uma vez, pelo clamor social/público, houve uma legitimação de que em nome da “lei e ordem” a pacificação social (e por que não dizer pseudo pacificação?), poder-se-ia menosprezar os direitos dos cidadãos que moram nas favelas. Nota-se que o limite é tênue quando se trata de uso necessário da força e de puro e simples arbítrio estatal.

(Érica Akie Hashimoto - site do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)

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