Desde 1999, o Ministério Público Federal (MPF) vem adotando medidas no sentido de contribuir para a consolidação da democracia e para a reafirmação de direitos e garantias fundamentais que foram suprimidos durante o regime militar. São medidas de “Justiça Transicional”, que tem como finalidades o esclarecimento da verdade, a responsabilização dos violadores de direitos humanos e reparação dos danos às vítimas.
Essa atuação do MPF foi iniciada com a tarefa humanitária de buscar e identificar restos mortais de políticos desaparecidos durante a ditadura para entregá-los às respectivas famílias.
Nesse sentido, recentemente foi ajuizada uma ação civil pública cujo objetivo principal é a declaração da responsabilidade civil de quatro militares reformados, acusados de serem responsáveis pela morte e desaparecimento forçado de, pelo menos, seis pessoas e por prática de tortura contra outras 20, detidas pela Operação Bandeirantes, conhecida como Oban.
A Oban foi uma experiência piloto para incrementar a atuação da repressão política nas esferas estadual e federal. Foi concebida pela constatação de que as forças policiais então existentes não eram eficientes em combater o que, à época, eram considerados crimes políticos, uma vez que estavam dispersas entre as Forças Armadas e as polícias civil, militar e federal.
Foi criada em São Paulo, que era considerado o principal pólo de “subversão”, com a edição do, lamentavelmente famoso, Ato Institucional nº 5/68 (AI-5), que previa o uso de tortura como meio método rotineiro de investigação e como punição de dissidentes políticos. Era coordenada pelo Comando do II Exército em 1969 e 1970, no auge do período ditatorial.
Essa primeira experiência rendeu muitos frutos no cenário policial: baseando-se nos resultados obtidos com a Oban, as Forças Armadas criaram o Destacamento de Operação de Informação dos Centros de Operação de Defesa Interna, o “Doi-Codi”, que a partir de 1970 centralizou a repressão.
Baseando-se em depoimentos de vítimas da Oban concedidos a tribunais militares e de informações guardadas em arquivos públicos, a ação civil narra 15 episódios em que a violência estatal vitimou fatalmente, no mínimo, seis militantes políticos, entre os quais está Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, apontado como líder do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick (que ocorreu em 1969). Há ainda citações a casos de tortura contra a presidente eleita Dilma Rousseff, presa e torturada em 1970, e o religioso Frei Tito, que se suicidou em 1974 em decorrência de sequelas das sessões de tortura, segundo depoimentos de pessoas que conviveram com ele.
Entre os terríveis e gravíssimos episódios narrados na ação, há que se destacar a violência sofrida pela família de Virgílio Gomes da Silva: sua esposa, seu irmão e três dos seus quatro filhos foram presos. Tamanha foi a crueldade empregada que Ilda, a esposa, não só foi torturada como obrigada a presenciar a aplicação de choques elétricos em sua filha Isabel, então com apenas quatro meses de idade.
Três dos acusados, Homero Cesar Machado, Innocencio Fabrício de Mattos Beltrão e Maurício Lopes Lima, são aposentados das Forças Armadas e um é da Polícia Militar de São Paulo, o capitão reformado João Thomaz.
A ação pede, além da responsabilidade civil dos militares, que eles sejam condenados ao pagamento de indenização à sociedade, tenham suas aposentadorias cassadas e ajudem a cobrir os gastos da União com indenizações para as vítimas.
A ação é assinada pelos procuradores da República Eugênia Augusta Gonzaga, Jefferson Aparecido Dias, Luiz Costa, Adriana da Silva Fernandes e Sergio Gardenghi Suiama.
O MPF também acionou a União e o Estado de São Paulo para que ambos façam um pedido de desculpas formal a toda a população em relação aos casos mencionados na ação e se manifestem sobre o interesse em ingressar com a ação ao lado do MP.
Segundo o MPF: “União e Estado deverão ainda tornar públicas à sociedade brasileira todas as informações relativas às atividades desenvolvidas na Oban, inclusive a divulgação dos nomes completos de todas as pessoas presas ilegalmente ou legalmente pelo órgão, nomes de todos os torturados e de todos que morreram naquelas dependências, o destino dos desaparecidos e os nomes completos dos particulares, pessoas físicas ou jurídicas, que contribuíram financeiramente para a sua atuação”.
No que tange à lei de Anistia e o julgamento ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal (que reafirma a validade da lei), a ação civil esclarece que não há menção a obrigações cíveis decorrentes de atos ilícitos anistiados, logo, a responsabilização civil não seria inviabilizada por esses textos legais.
No julgamento, os ministros do STF Carmen Lúcia, Eros Grau, Cezar Peluso, Celso de Mello, além de Carlos Ayres Britto e Ricardo Lewandowski – que julgaram procedente a ADPF – destacaram a importância de se buscar medidas visando a reparação, o esclarecimento da verdade e outras providências relacionadas ao que se passou no período abrangido pela lei, ainda que a punição criminal esteja vedada.
Ademais, os episódios de tortura e morte relatados constituem crimes contra a humanidade, considerados imprescritíveis, seja na esfera civil, seja na penal. Isso sem mencionar os acordos internacionais a que o Brasil está vinculado, os quais geram a obrigação de apurar as graves violações aos direitos humanos.
Desde 2008, esta é a quinta ação ajuizada pelo MPF com o objetivo de obter a responsabilização civil dos envolvidos com violações de direitos humanos durante o regime militar. Regime este que deixou marcas que não devem ser esquecidas para que não se repitam. Como disse William Faulkner, “O passado nunca está morto, não é nem sequer passado.”
(Érica Akie Hashimoto - Site IBCCrim)
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