Recentemente, vieram à tona cenas de barbárie e intolerância envolvendo estudantes de duas das maiores e mais importantes universidades do país: a USP (Universidade de São Paulo) e a UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho). Nesta, o destaque foi a “brincadeira” realizada no encontro anual, conhecido como InterUNESP, em que alunos se divertiram às custas do excesso de peso de algumas alunas. Na USP, foi noticiado caso de agressão a um aluno homossexual, em uma festa promovida pela Escola de Comunicações e Artes (ECA).
O InterUnesp é um evento esportivo e cultural que reúne os alunos dos 23 campus que integram a UNESP. Este ano, os jogos universitários foram realizados na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, entre os dias 09 e 12 de outubro, com a presença de mais de 15 mil estudantes.
O que causou tanto tumulto nesta edição foi a competição batizada de “Rodeio das Gordas”, que consistia em abordar e segurar uma aluna obesa por até oito segundos, simulando um rodeio. O episódio possuía até regulamento postado na internet (no site de relacionamentos Orkut) e contou com a participação de mais de 50 pessoas.
Segundo estudantes que testemunharam a “competição”, os rapazes se aproximavam das moças “jogando conversa fora, como se fossem paquerá-las”. Na primeira oportunidade, agarravam as meninas pelas costas e as montavam, como os peões fazem nas arenas. Os amigos formavam uma roda e cronometravam as performances. Quem tivesse o melhor “desempenho”, era premiado com um abadá e uma caneca.
Diante de tamanha brutalidade e desrespeito, o caso repercutiu na mídia e não foram poucas as manifestações de repúdio à pseudobrincadeira, que foi considerada por muitos um caso de bullying ou, mais grave que isso, um episódio de violência de gênero.
“Que tipo de seres humanos estamos formando, se estas pessoas que pertencem a uma elite cultural e intelectual no país violam - por prazer! - os direitos humanos de suas colegas, inflingindo a elas um tipo de tortura que vai deixar marcas para sempre? Que tipo de gente estamos formando, que se dá o direito de "montar" sobre suas colegas para ridicularizá-las em público, coisa que parcela da sociedade não aceita mais que se faça nem com animais de carga ou de produção, por se configurar como crueldade contra os animais?”, questionou em nota de repúdio, Valéria Melki Busin, integrante de uma entidade feminista.
De acordo com a advogada da ONG Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre sexualidades (NEPS), Fernanda Rodrigues Nigro, “além do ato de violência física e psicológica que caracteriza o bullying, podemos falar em assédio moral, constrangimento e crimes de discriminação e preconceito”.
Depois de o MP (Ministério Público) de Araraquara ter instaurado inquérito civil para apurar os acontecimentos, a UNESP criou comissão disciplinar para investigar a agressão. Na portaria que dá início formal ao processo disciplinar foram citados nominalmente os estudantes “R.N.” e “D.P.S”. R.N., estudante de engenharia biotecnológica do campus de Assis, foi um dos organizadores e disse que era “só uma brincadeira”. Ele negou a participação no assédio, mas admitiu estar arrependido de ter divulgado o rodeio.
Os organizadores do “rodeio” fizeram um vídeo em que pedem desculpas e se dizem surpresos com a repercussão do caso. O depoimento será analisado pela comissão disciplinar, que terá 60 dias para apurar as responsabilidades pelo ocorrido. As punições previstas vão desde advertência à suspensão e expulsão.
Menos de duas semanas depois dos atos de violência terem ocorrido no InterUnesp, um estudante gay é agredido física e verbalmente em festa promovida pela Associação Atlética da ECA-USP.
O estudante do curso de Biologia, Henrique Andrade, foi acompanhado do namorado e oito amigos à festa “Outubro ou Nada”, que teve lugar em um casarão no bairro Morumbi. O estudante disse que estava sentado em um sofá conversando com o namorado quando três rapazes se aproximaram e começaram a xingá-los. Não bastasse a agressão moral, esses rapazes deram socos e chutes no casal.
Segundo Andrade, a segurança do evento demorou a agir. Em carta ao Centro Acadêmico da Biologia, o estudante alega que “nitidamente compartilhando da visão homofóbica dos agressores, o segurança ficou olhando a briga. (...) A equipe de segurança só tomou uma atitude após a formação de um aglomerado indignado com a barbárie que estava acontecendo”. Os agressores só foram retirados da festa após a intervenção da direção da Atlética da ECA-USP.
A vítima registrou boletim de ocorrência na sede da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos contra a Intolerância), localizada no bairro da Luz, no centro de São Paulo.
Como homofobia não é crime, o caso foi registrado como injúria e lesão corporal. A Decradi ainda não instaurou nenhum inquérito para apurar o caso porque a vítima não fez a representação contra os agressores, os quais ainda não foram identificados, mas provavelmente não eram alunos da ECA. Para que haja uma investigação, os estudantes deverão entrar com uma queixa-crime no prazo de seis meses. "Ainda vamos estudar se entraremos com a representação. Nossa intenção não é culpar ninguém, mas tentar impedir que novas ações de homofobia como essas ocorram em eventos da USP. Não acho que atitudes homofóbicas como as ocorridas na festa pelos agressores e pelo segurança devam ser vistas como naturais, relevadas pelas pessoas.”
Ao tomar conhecimento de fatos como esses, é quase impossível não se indignar ou ficar horrorizado. E só. A verdade é que, não poucas vezes, permanecemos apáticos em relação à dor dos outros, lentos demais para ir em defesa de quem está sendo rechaçado, pisoteado, humilhado. E ainda por cima, há quem responsabilize as vítimas pelas agressões que sofrem por suas próprias indiscrições (“Também, com aquele vestidinho rosa, ela esperava o quê?”). Provavelmente, os casos relatados não serão questionados desta forma. Mas, com certeza, há quem considere um exagero considerá-los violência de gênero.
A simples pressão social a que se submetem as mulheres para se enquadrar no padrão de beleza já constituiria por si só uma violência de gênero, uma vez que os homens não se sentem tão desvalorizados, muito menos tem sua auto-estima tão rebaixada, quanto as mulheres por causa do peso, do formato de partes do seu corpo, cor do cabelo, roupas que veste, etc. Logo, o “rodeio”não apenas utilizou-se da violência de gênero a extremos, mas o fez com demasiada crueldade na medida em que expôs as vítimas ao ridículo, humilhando-as.
Seria tão difícil enxergar a violência de gênero em uma agressão motivada pura e simplesmente pela opção sexual da pessoa?
Fica a pergunta: queremos uma sociedade que reforça estigmas, estereótipos, a discriminação, a violência? Ou seria uma sociedade que consegue respeitar e conviver com a diversidade? Não é uma escolha difícil de ser feita. A pergunta, então, não é o que queremos, mas, diante do que temos presenciado, como conseguiremos alcançar o que queremos.
(Artigo de Érica Akie Hashimoto, do site do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)
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