quinta-feira, 16 de junho de 2011

STF garante o direito à livre manifestação

A decisão do STF, em ADPF proposta pela Procuradoria-Geral da República, com o apoio do IBCCrim, deixou claro que a liberdade de expressão e manifestação está acima de qualquer moralismo hipócrita. Como existem drogas lícitas e destrutivas, deve-se discutir a legalização da maconha, cuja diferença para o álcool é apenas a ilicitude. A isonomia deve ser plena no direito. Se não se pode discutir a legalização da maconha, pelos mesmos motivos alegados o álcool e a nicotina devem ser proibidos. Aquele que guarda uma lata de cerveja na geladeira pratica conduta tão perigosa quanto aquele que planta maconha em casa. No fundo, uma conduta lesiva que diz respeito apenas à vida do sujeito não é problema do direito penal. As leis penais devem se preocupar com comportamentos lesivos a terceiros. Parabéns ao STF que ceifou os valores meramente morais para promover a democracia.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Minha participação na TV Justiça

De volta com o blog

Depois de alguns meses ausente, resolvi atualizar o blog. Foi um período de muito trabalho e pouca inspiração para escrever. Porém, para minha alegria (ou tristeza) surge novamente a acalourada discussão sobre a Marcha da Maconha.
Sem uma discussão profunda, como requer a complexidade do tema, várias decisões judiciais são proferidas para proibir o movimento. Não sei se é impressão minha, mas falta argumentação suficiente para tal proibição. Diante de tantas opiniões conduzidas pela emoção, a única coisa que posso dizer é a seguinte: só aceitarei opinião contra a Marcha de quem não seja consumidor de drogas. Muitos consumidores de drogas lícitas são contra o movimento pelos motivos mais moralistas possíveis. Por enquanto, fico por aqui apenas com o alerta: a arbitrariedade das decisões que proíbem a Marcha pode recair sobre uma decisão judicial importante para a vida dos que se opõem a ela.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O mês de novembro foi marcado por episódios de violência e pânico na cidade maravilhosa. Notícias de que veículos estavam sendo incendiados em diversos pontos do Rio de Janeiro, fizeram a atenção nacional voltar-se ao drama carioca que estava apenas por começar. Em resposta aos ataques a carros e a situação de instabilidade gerada, o governo fluminense iniciou uma operação de grande porte, envolvendo as Polícias Civil, Militar e Federal e as Forças Armadas. Houve uma conturbada ocupação de favelas que foi (e ainda é) explorada de forma deveras exaustiva pela mídia, a qual rotulou a situação encontrada no Rio como uma “guerrilha urbana” e passou a tratá-la como uma verdadeira batalha maniqueísta em que, finalmente, houve um histórico triunfo do “bem”.

O Rio vinha enfrentando “arrastões” desde o final do mês de setembro. Mas, aparentemente, tudo começou em 21 de novembro, dia em que foram apontados vários assaltos desse tipo pela cidade. Nos dias seguintes, carros foram incendiados e cabines da Polícia Militar (PM) foram atacadas. Tais acontecimentos foram entendidos pelo Governo estadual como retaliação à transferência de alguns presos para penitenciárias federais e à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s) em parte das favelas, a qual teria resultado na saída de supostos integrantes de quadrilhas de traficantes.

As UPP’s têm sido implantadas desde 2008. A primeira foi instalada na favela Morro Dona Marta, posteriormente, na Cidade de Deus, Batan, Pavão-Pavãozinho, Morro dos Macacos e outras. Totalizando, hoje 35 comunidades têm a presença das UPP’s.

Outras informações deram conta de que duas importantes facções se uniram para enfrentar a polícia – o Comando Vermelho (CV) e Amigos dos Amigos (ADA). Até 2003 a Rocinha, atual reduto e principal fonte de renda do ADA, era controlada pelo CV, que, até os recentes acontecimentos, tinha como “quartéis-generais” o Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro.

Partindo dessas informações, iniciou-se uma megaoperação policial em 18 comunidades cariocas, anunciada amplamente por manchetes de revistas e jornais como uma “guerra contra o tráfico/crime”. Dia após dia, as manobras foram tomando contornos mais ostensivos, à medida que as mais diversas corporações governamentais integravam a operação.

O Brasil viu cenas que até então faziam parte da aclamada produção cinematográfica nacional de José Padilha: o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) entrou em quatro comunidades da Penha com sete “caveirões” e com homens “armados até os dentes”; no dia seguinte a este, carros blindados da Marinha adentraram a favela conhecida como Vila Cruzeiro e “expulsaram” cerca de 200 supostos traficantes de lá.

As imagens da fuga desses homens por uma estrada de terra em direção ao Complexo do Alemão, posteriormente ocupado também, foram exploradas pelas emissoras de TV incessantemente e tidas como um marco histórico, como uma genuína prova da primeira vitória sobre o crime. Não faltou quem defendesse, seja no Twitter, seja em comentários às constantes publicações de sites de notícias, a ação do helicóptero da Polícia contra os fugitivos.

Passada a fase de ocupação, foram tomadas outras providencias, entre as quais está a típica operação “pente fino”, que consiste em revistar todas as casas à procura de possíveis traficantes, armas e drogas. O procedimento tem sido realizado em todas as comunidades ocupadas.

Em balanço divulgado pela PM do Rio na sexta-feira, 03 de dezembro, em 12 dias de confronto, foram apreendidas 518 armas (sendo 200 pistolas, 140 fuzis, 73 revólveres, 35 metralhadoras, 34 espingardas e 18 submetralhadoras), além de granadas e bombas artesanais. Também foi divulgada a apreensão de armamentos mais pesados, como bazucas. O total de drogas apreendidas foi de 34.194 toneladas, sendo 33,8 toneladas de maconha, 313,9 quilos de cocaína, 54 quilos de crack e 1,9 quilo de haxixe, além de 108 litros de cloreto de etila, usado para fazer lança-perfume. O número de presos ficou em 118, com a apreensão de 21 menores. A maior parte das apreensões e prisões ocorreu na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão.

Apesar dos resultados apresentados, há de se fazer algumas ressalvas no que tange a ação policial durante a megaoperação. Em coluna no jornal Folha de S. Paulo, Marcelo Freixo, deputado do Rio de Janeiro pelo PSOL, faz críticas à lógica de guerra intrínseca à segurança pública. O deputado afirma que o atual modelo de enfrentamento que não será eficaz, uma vez que considera uma ingenuidade crer que confrontos armados nas favelas extirparão o crime organizado. Destaca também que para resolver esse problema seria necessário agir nos locais onde o crime nasce e verificar os meios pelos quais armas e drogas chegam às favelas: “É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional”.

Toda a operação realizada pela Polícia para capturar os supostos traficantes, bem como a ocupação das favelas causou uma série de transtornos aos moradores das comunidades. Nos primeiros momentos a população ficou sem saber exatamente o que estava acontecendo, a recomendação era de que permanecessem em suas casas e, dependendo da região, algumas famílias ficaram impedidas de retornar aos seus lares por alguns dias, dado o clima de “guerra declarada” instaurado, com blindados pelas ruas e rajadas de tiros a todo instante.

Mas é inegável que, com esses acontecimentos, a população carioca (nesse caso, mais especificamente os moradores das comunidades ocupadas) teve um momento de aproximação com sua Polícia, após um longo período de mútua desconfiança, quando não de franca hostilidade. Entretanto, vale destacar que, apesar de pesquisas apontarem para uma ampla aprovação da população carioca em relação às ações da polícia, uma série de arbitrariedades e violações aos direitos civis de moradores foi (e ainda é) cometida durante a “pacificação” das comunidades.

No começo do mês de dezembro, foram noticiados abusos nas operações policiais. Alguns moradores alegaram que alguns bens e dinheiro haviam sido levados de suas residências durantes as buscas. Uma moradora chegou a pregar um bilhete na porta de sua casa, avisando que o local já havia sido vistoriado e que pedindo que sua porta não fosse arrombada (foto).

De acordo com a legislação penal, a busca em domicílio é admitida em situações específicas e a entrada policial deve ser estabelecida por mandado judicial, além do consentimento do morador. No caso do Complexo do Alemão, da Vila Cruzeiro e de outras tantas comunidades cariocas, há uma situação, de fato, excepcional, em que toda atividade policial perseguia um fim comum. Todavia, há de se ressaltar que a excepcionalidade momentânea não deve afastar direitos e garantias fundamentais.

Recentemente, a AJD (Associação de Juízes para a Democracia) se manifestou no sentido de atentar para a escalada de violência “tanto estatal quanto privada”. Para o juiz Rubens Casara, conselheiro da ADJ, na tentativa de combater os que violam a lei, o próprio Estado a está violando. Casara considera que o principal problema não é o fato de um ou outro policial praticar abusos nas operações, mas a estrutura que leva a esses tipos de abusos. “O que estimula a ilegalidade é toda uma cultura autoritária, com institutos e práticas que desrespeitam o outro e estão descompromissados com a democracia”, disse.

Até o momento, foram divulgadas apenas as quantidades de presos e de “bandidos” mortos, não foi contabilizado o número de inocentes mortos durante as ações. Faz-se necessário considerar que boa parte das pessoas que moram nas favelas trabalha para sustentar a família, não vivem do tráfico, como estampa a mídia em geral, tratando as comunidades como antro de “bandidagem”. Uma das vítimas foi Rosângela Barbosa, de14 anos. Em momento de revolta, o pai da menina desabafou: “vocês tem que aprender que não é só bandido que mora em favela não. Minha filha foi baleada no peito, enquanto estava no computador. Mais um inocente. Parabéns para vocês. Parabéns”, referindo-se à polícia.

Em analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial, falou-se em “Dia D”, com claro viés maniqueísta, como se depois dessa data o Rio passou a ser uma cidade segura, apta para sediar os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de Futebol, que estão por vir. Mais uma vez, pelo clamor social/público, houve uma legitimação de que em nome da “lei e ordem” a pacificação social (e por que não dizer pseudo pacificação?), poder-se-ia menosprezar os direitos dos cidadãos que moram nas favelas. Nota-se que o limite é tênue quando se trata de uso necessário da força e de puro e simples arbítrio estatal.

(Érica Akie Hashimoto - site do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)

sábado, 4 de dezembro de 2010

Heranças da Ditadura

Desde 1999, o Ministério Público Federal (MPF) vem adotando medidas no sentido de contribuir para a consolidação da democracia e para a reafirmação de direitos e garantias fundamentais que foram suprimidos durante o regime militar. São medidas de “Justiça Transicional”, que tem como finalidades o esclarecimento da verdade, a responsabilização dos violadores de direitos humanos e reparação dos danos às vítimas.

Essa atuação do MPF foi iniciada com a tarefa humanitária de buscar e identificar restos mortais de políticos desaparecidos durante a ditadura para entregá-los às respectivas famílias.

Nesse sentido, recentemente foi ajuizada uma ação civil pública cujo objetivo principal é a declaração da responsabilidade civil de quatro militares reformados, acusados de serem responsáveis pela morte e desaparecimento forçado de, pelo menos, seis pessoas e por prática de tortura contra outras 20, detidas pela Operação Bandeirantes, conhecida como Oban.

A Oban foi uma experiência piloto para incrementar a atuação da repressão política nas esferas estadual e federal. Foi concebida pela constatação de que as forças policiais então existentes não eram eficientes em combater o que, à época, eram considerados crimes políticos, uma vez que estavam dispersas entre as Forças Armadas e as polícias civil, militar e federal.

Foi criada em São Paulo, que era considerado o principal pólo de “subversão”, com a edição do, lamentavelmente famoso, Ato Institucional nº 5/68 (AI-5), que previa o uso de tortura como meio método rotineiro de investigação e como punição de dissidentes políticos. Era coordenada pelo Comando do II Exército em 1969 e 1970, no auge do período ditatorial.

Essa primeira experiência rendeu muitos frutos no cenário policial: baseando-se nos resultados obtidos com a Oban, as Forças Armadas criaram o Destacamento de Operação de Informação dos Centros de Operação de Defesa Interna, o “Doi-Codi”, que a partir de 1970 centralizou a repressão.

Baseando-se em depoimentos de vítimas da Oban concedidos a tribunais militares e de informações guardadas em arquivos públicos, a ação civil narra 15 episódios em que a violência estatal vitimou fatalmente, no mínimo, seis militantes políticos, entre os quais está Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, apontado como líder do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick (que ocorreu em 1969). Há ainda citações a casos de tortura contra a presidente eleita Dilma Rousseff, presa e torturada em 1970, e o religioso Frei Tito, que se suicidou em 1974 em decorrência de sequelas das sessões de tortura, segundo depoimentos de pessoas que conviveram com ele.

Entre os terríveis e gravíssimos episódios narrados na ação, há que se destacar a violência sofrida pela família de Virgílio Gomes da Silva: sua esposa, seu irmão e três dos seus quatro filhos foram presos. Tamanha foi a crueldade empregada que Ilda, a esposa, não só foi torturada como obrigada a presenciar a aplicação de choques elétricos em sua filha Isabel, então com apenas quatro meses de idade.

Três dos acusados, Homero Cesar Machado, Innocencio Fabrício de Mattos Beltrão e Maurício Lopes Lima, são aposentados das Forças Armadas e um é da Polícia Militar de São Paulo, o capitão reformado João Thomaz.

A ação pede, além da responsabilidade civil dos militares, que eles sejam condenados ao pagamento de indenização à sociedade, tenham suas aposentadorias cassadas e ajudem a cobrir os gastos da União com indenizações para as vítimas.

A ação é assinada pelos procuradores da República Eugênia Augusta Gonzaga, Jefferson Aparecido Dias, Luiz Costa, Adriana da Silva Fernandes e Sergio Gardenghi Suiama.

O MPF também acionou a União e o Estado de São Paulo para que ambos façam um pedido de desculpas formal a toda a população em relação aos casos mencionados na ação e se manifestem sobre o interesse em ingressar com a ação ao lado do MP.

Segundo o MPF: “União e Estado deverão ainda tornar públicas à sociedade brasileira todas as informações relativas às atividades desenvolvidas na Oban, inclusive a divulgação dos nomes completos de todas as pessoas presas ilegalmente ou legalmente pelo órgão, nomes de todos os torturados e de todos que morreram naquelas dependências, o destino dos desaparecidos e os nomes completos dos particulares, pessoas físicas ou jurídicas, que contribuíram financeiramente para a sua atuação”.

No que tange à lei de Anistia e o julgamento ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal (que reafirma a validade da lei), a ação civil esclarece que não há menção a obrigações cíveis decorrentes de atos ilícitos anistiados, logo, a responsabilização civil não seria inviabilizada por esses textos legais.

No julgamento, os ministros do STF Carmen Lúcia, Eros Grau, Cezar Peluso, Celso de Mello, além de Carlos Ayres Britto e Ricardo Lewandowski – que julgaram procedente a ADPF – destacaram a importância de se buscar medidas visando a reparação, o esclarecimento da verdade e outras providências relacionadas ao que se passou no período abrangido pela lei, ainda que a punição criminal esteja vedada.

Ademais, os episódios de tortura e morte relatados constituem crimes contra a humanidade, considerados imprescritíveis, seja na esfera civil, seja na penal. Isso sem mencionar os acordos internacionais a que o Brasil está vinculado, os quais geram a obrigação de apurar as graves violações aos direitos humanos.

Desde 2008, esta é a quinta ação ajuizada pelo MPF com o objetivo de obter a responsabilização civil dos envolvidos com violações de direitos humanos durante o regime militar. Regime este que deixou marcas que não devem ser esquecidas para que não se repitam. Como disse William Faulkner, “O passado nunca está morto, não é nem sequer passado.”

(Érica Akie Hashimoto - Site IBCCrim)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Pobreza e política higienista

Em maio deste ano, noticiamos uma terrível chacina, no bairro Jaçanã, zona Norte de São Paulo: seis pessoas que dormiam sob um viaduto foram mortas a tiros. Infelizmente, os assassinatos e os atos violentos contra os moradores em situação de rua continuam, como podemos observar nos casos divulgados no estado de Alagoas. Mais ainda, o descaso com as investigações desses crimes também continua.

Segundo a Gazeta de Alagoas, “o número de assassinatos de moradores de rua em Alagoas é bem maior do que o divulgado. Um documento oficial e sigiloso da Secretaria de Defesa Social (SEDS) apontava para 29 mortes, só este ano, e não 22. Com mais um homicídio, ontem, a estatística sombria subiu para 30 casos, sendo 29 em Maceió e um em Arapiraca”. Pelos levantamentos feitos pela Polícia Civil, 52% das moradores de rua foram mortos por arma de fogo e 14% por arma branca.

Como é de costume, quando se trata de crimes contra pobres, as investigações são proteladas ou não se realizam. A Gazeta de Alagoas divulgou que dos 27 inquéritos (90% do total) sequer dispõem do laudo do Instituto Médico Legal (IML). Sem o resultado da necrópsia, nem a materialidade do crime poderia ser comprovada. O documento obtido pela Gazeta revela que em mais da metade das execuções (16 casos) a polícia não sabe nem a identidade das vítimas.

Com base nestas e noutras falhas, além dos números alarmantes, a Secretaria de Direitos Humanos, Segurança Comunitária e Cidadania de Maceió (Semdisc), com o apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos (DH) da Presidência da República, vai requerer que a Polícia Federal (PF) investigue as mortes de sem-tetos em Alagoas. O secretário da Semdisc, Pedro Montenegro, afirma que vai recorrer à Lei Federal 10.446, de maio de 2002, para requisitar a intervenção do Ministério da Justiça.

Esta lei estabelece que o ministério pode acionar a PF, num ato administrativo, em casos de "infrações penais relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais", principalmente "quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme".

O representante da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Ivair Augusto Alves dos Santos, alerta que o Brasil pode sofrer ser denunciado nos órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos.
Os números revelam o total descaso. Em 2010, dos 30 inquéritos por mortes violentas abertos até ontem, apenas cinco foram concluídos. Somente em dois deles houve a prisão dos acusados. São 28 mortes de sem-teto impunes. Também houve duas tentativas de homicídio, numa delas jogaram combustível e tocaram fogo na vítima.

Montenegro, secretário da Semdisc, afirma que decidiu requerer as investigações da PF porque compete à Semdisc zelar pelos direitos humanos e pela vida das pessoas. "Também decidi fazer o apelo ao Ministério da Justiça porque perdi as esperanças de que a Polícia Civil consiga uma resposta satisfatória sobre os autores do crime".


Um dos casos mais cruéis foi do flanelinha José Sérgio dos Santos, o “Cotó”, foi executado com 13 tiros de pistola 380, disparados por dois homens em uma moto, durante a madrugada, do dia 26.10.10. Após a morte de José Sérgio, o secretário da Defesa Social, Paulo Rubim, disse que a vítima praticava "pequenos furtos e tinha envolvimento com o tráfico de drogas".

Mais de uma vez, nos pronunciamentos das autoridades, falou-se que os moradores estariam ligados ao tráfico de drogas, como se eles tivessem assumido o risco de serem mortos e não tivessem direito à proteção. Essa questionável justificativa, se verdadeira, revela que a criminalização das drogas vitimiza os mais pobres, seja direta ou indiretamente.

De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, não há um levantamento oficial sobre o número de moradores de rua no país. "Estamos conversando com técnicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para quantificar esse contingente de cidadãos brasileiros marginalizados. A partir daí, queremos desenvolver ações públicas, em âmbito nacional, para sanar as necessidades nas áreas da saúde, assistência social, trabalho e também oferecer garantias de acesso à segurança e moradia", disse Santos.

(Do site do IBCCrim - Yasmin Oliveira Mercadante Pestana)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Violência de gênero

Recentemente, vieram à tona cenas de barbárie e intolerância envolvendo estudantes de duas das maiores e mais importantes universidades do país: a USP (Universidade de São Paulo) e a UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho). Nesta, o destaque foi a “brincadeira” realizada no encontro anual, conhecido como InterUNESP, em que alunos se divertiram às custas do excesso de peso de algumas alunas. Na USP, foi noticiado caso de agressão a um aluno homossexual, em uma festa promovida pela Escola de Comunicações e Artes (ECA).

O InterUnesp é um evento esportivo e cultural que reúne os alunos dos 23 campus que integram a UNESP. Este ano, os jogos universitários foram realizados na cidade de Araraquara, interior de São Paulo, entre os dias 09 e 12 de outubro, com a presença de mais de 15 mil estudantes.

O que causou tanto tumulto nesta edição foi a competição batizada de “Rodeio das Gordas”, que consistia em abordar e segurar uma aluna obesa por até oito segundos, simulando um rodeio. O episódio possuía até regulamento postado na internet (no site de relacionamentos Orkut) e contou com a participação de mais de 50 pessoas.

Segundo estudantes que testemunharam a “competição”, os rapazes se aproximavam das moças “jogando conversa fora, como se fossem paquerá-las”. Na primeira oportunidade, agarravam as meninas pelas costas e as montavam, como os peões fazem nas arenas. Os amigos formavam uma roda e cronometravam as performances. Quem tivesse o melhor “desempenho”, era premiado com um abadá e uma caneca.

Diante de tamanha brutalidade e desrespeito, o caso repercutiu na mídia e não foram poucas as manifestações de repúdio à pseudobrincadeira, que foi considerada por muitos um caso de bullying ou, mais grave que isso, um episódio de violência de gênero.

“Que tipo de seres humanos estamos formando, se estas pessoas que pertencem a uma elite cultural e intelectual no país violam - por prazer! - os direitos humanos de suas colegas, inflingindo a elas um tipo de tortura que vai deixar marcas para sempre? Que tipo de gente estamos formando, que se dá o direito de "montar" sobre suas colegas para ridicularizá-las em público, coisa que parcela da sociedade não aceita mais que se faça nem com animais de carga ou de produção, por se configurar como crueldade contra os animais?”, questionou em nota de repúdio, Valéria Melki Busin, integrante de uma entidade feminista.

De acordo com a advogada da ONG Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre sexualidades (NEPS), Fernanda Rodrigues Nigro, “além do ato de violência física e psicológica que caracteriza o bullying, podemos falar em assédio moral, constrangimento e crimes de discriminação e preconceito”.

Depois de o MP (Ministério Público) de Araraquara ter instaurado inquérito civil para apurar os acontecimentos, a UNESP criou comissão disciplinar para investigar a agressão. Na portaria que dá início formal ao processo disciplinar foram citados nominalmente os estudantes “R.N.” e “D.P.S”. R.N., estudante de engenharia biotecnológica do campus de Assis, foi um dos organizadores e disse que era “só uma brincadeira”. Ele negou a participação no assédio, mas admitiu estar arrependido de ter divulgado o rodeio.

Os organizadores do “rodeio” fizeram um vídeo em que pedem desculpas e se dizem surpresos com a repercussão do caso. O depoimento será analisado pela comissão disciplinar, que terá 60 dias para apurar as responsabilidades pelo ocorrido. As punições previstas vão desde advertência à suspensão e expulsão.

Menos de duas semanas depois dos atos de violência terem ocorrido no InterUnesp, um estudante gay é agredido física e verbalmente em festa promovida pela Associação Atlética da ECA-USP.

O estudante do curso de Biologia, Henrique Andrade, foi acompanhado do namorado e oito amigos à festa “Outubro ou Nada”, que teve lugar em um casarão no bairro Morumbi. O estudante disse que estava sentado em um sofá conversando com o namorado quando três rapazes se aproximaram e começaram a xingá-los. Não bastasse a agressão moral, esses rapazes deram socos e chutes no casal.

Segundo Andrade, a segurança do evento demorou a agir. Em carta ao Centro Acadêmico da Biologia, o estudante alega que “nitidamente compartilhando da visão homofóbica dos agressores, o segurança ficou olhando a briga. (...) A equipe de segurança só tomou uma atitude após a formação de um aglomerado indignado com a barbárie que estava acontecendo”. Os agressores só foram retirados da festa após a intervenção da direção da Atlética da ECA-USP.

A vítima registrou boletim de ocorrência na sede da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos contra a Intolerância), localizada no bairro da Luz, no centro de São Paulo.

Como homofobia não é crime, o caso foi registrado como injúria e lesão corporal. A Decradi ainda não instaurou nenhum inquérito para apurar o caso porque a vítima não fez a representação contra os agressores, os quais ainda não foram identificados, mas provavelmente não eram alunos da ECA. Para que haja uma investigação, os estudantes deverão entrar com uma queixa-crime no prazo de seis meses. "Ainda vamos estudar se entraremos com a representação. Nossa intenção não é culpar ninguém, mas tentar impedir que novas ações de homofobia como essas ocorram em eventos da USP. Não acho que atitudes homofóbicas como as ocorridas na festa pelos agressores e pelo segurança devam ser vistas como naturais, relevadas pelas pessoas.”

Ao tomar conhecimento de fatos como esses, é quase impossível não se indignar ou ficar horrorizado. E só. A verdade é que, não poucas vezes, permanecemos apáticos em relação à dor dos outros, lentos demais para ir em defesa de quem está sendo rechaçado, pisoteado, humilhado. E ainda por cima, há quem responsabilize as vítimas pelas agressões que sofrem por suas próprias indiscrições (“Também, com aquele vestidinho rosa, ela esperava o quê?”). Provavelmente, os casos relatados não serão questionados desta forma. Mas, com certeza, há quem considere um exagero considerá-los violência de gênero.

A simples pressão social a que se submetem as mulheres para se enquadrar no padrão de beleza já constituiria por si só uma violência de gênero, uma vez que os homens não se sentem tão desvalorizados, muito menos tem sua auto-estima tão rebaixada, quanto as mulheres por causa do peso, do formato de partes do seu corpo, cor do cabelo, roupas que veste, etc. Logo, o “rodeio”não apenas utilizou-se da violência de gênero a extremos, mas o fez com demasiada crueldade na medida em que expôs as vítimas ao ridículo, humilhando-as.

Seria tão difícil enxergar a violência de gênero em uma agressão motivada pura e simplesmente pela opção sexual da pessoa?

Fica a pergunta: queremos uma sociedade que reforça estigmas, estereótipos, a discriminação, a violência? Ou seria uma sociedade que consegue respeitar e conviver com a diversidade? Não é uma escolha difícil de ser feita. A pergunta, então, não é o que queremos, mas, diante do que temos presenciado, como conseguiremos alcançar o que queremos.

(Artigo de Érica Akie Hashimoto, do site do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)