sexta-feira, 2 de julho de 2010

Artigo sobre a Marcha da Maconha

Artigo publicado na Revista Consulex n. 318, de 15 de abril de 2010.

APOLOGIA AO CRIME EM CONFRONTO COM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

JOÃO PAULO ORSINI MARTINELLI

Este artigo tem como objetivo analisar a incitação e a apologia ao crime e os conflitos com a liberdade de expressão, utilizando o caso concreto da “marcha da maconha”. Faremos a exposição do problema diante de três aspectos: (a) questões dogmáticas dos tipos penais da incitação e da apologia ao crime (artigos 286 e 287 do CP); (b) a definição e a legitimidade da liberdade de expressão; (c) princípios da ofensividade e da subsidiariedade do direito penal. Ao final, teceremos nossas conclusões.

1. Questões dogmáticas do tipo penal da apologia ao crime

Primeiramente, quando analisamos um crime em espécie, o mais importante é apontar qual o bem jurídico que se pretende tutelar pelo tipo penal respectivo. Uma das funções primordiais do direito penal é a proteção de bens jurídicos e, portanto, este deve ser delimitado pelo legislador. No caso da incitação e da apologia ao crime, o bem jurídico é a paz pública. Verificamos que a definição de paz pública é bastante deficiente. No entanto, mesmo que consigamos defini-la para fins penais, difícil é constatar a lesão ou perigo de lesão a este bem jurídico.

A doutrina define a paz pública como “coexitência harmônica e pacífica dos cidadãos sob a soberania do Estado de direito”, num sentido objetivo, e “a convicção de segurança social, que é a base da vida civil”, num sentido subjetivo (REGIS PRADO, 2008, p. 210). HUNGRIA ainda revela a confusão doutrinária em distinguir a ordem pública da paz pública, preferindo conceituar esta como “sentimento geral de tranquilidade, de sossego, de paz, que corresponde à confiança na continuidade normal da ordem jurídico-social” (1958, p. 162).

Nota-se como é vago o conceito de paz pública, especialmente para confirmar a consumação dos crimes. Maior ainda a dificuldade para constatar eventual tentativa. Também se apresenta como desafio individualizar a responsabilidade de cada um pela eventual quebra de tranqüilidade da ordem social ao defender, por exemplo, a legalização de uma droga.

Desse modo, podemos partir de dois pontos para compreender o obstáculo de considerarmos a paz pública como bem jurídico-penal: primeiramente, delimitar o próprio bem jurídico; segundo, mesmo que consideremos o bem jurídico delimitado, como apontar o real perigo de lesão a que se expõe com a apologia ou incitação. Quanto à primeira questão, já restou comprovado como o conceito de paz pública é vago. O segundo aspecto requer considerarmos o bem jurídico e suas implicações com o elemento subjetivo do tipo e a consumação do crime.

O elemento subjetivo do tipo é o dolo de fazer a incitação ou a apologia a fato definido em lei como crime. Entendemos que existe um requisito fundamental para a configuração do delito: a consciência e a vontade de atingir efetivamente a paz pública através de seu manifesto. O agente quer perturbar a sociedade e provocar o caos, a inquietude das pessoas, a falta de segurança. Quando alguém manifesta insatisfação com uma situação ou deseja debater determinados assuntos não há o elemento subjetivo dos crimes de incitação e apologia ao crime. Diferentemente, o objetivo é discutir os motivos de se manter a conduta criminalizada no ordenamento jurídico.

A consumação do crime também é de difícil constatação. GRECO entende que tais crimes são consumados quando o agente, “coloca, efetivamente, em risco a paz pública, criando uma sensação de instabilidade social, de medo, de insegurança no corpo social” (2006, pp. 224 e 231). Para BITENCOURT, a consumação se dá com a simples incitação, perceptível por número indeterminado de pessoas, mesmo que ninguém efetivamente pratique o crime (2006, p. 286). Por fim, e sem esgotar, REGIS PRADO entende que não é necessário que realmente tenha ocorrido a perturbação da paz pública (2008, p. 216). Assim, percebe-se que estes crimes são de perigo mais abstrato possível.

2. Definição e legitimidade da liberdade de expressão

A liberdade de expressão encontra previsão constitucional (artigo 5°, IV), e amparo na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu artigo 13°. Como importante antecedente histórico, temos a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, segundo a qual o Congresso não poderá editar qualquer lei que restrinja a liberdade da palavra ou de imprensa.

Vários são os conceitos de liberdade de expressão que encontramos na doutrina e na jurisprudência. Para não sermos repetitivos, definiremos a liberdade de expressão, sucintamente, como o direito a manifestar, de diversos modos, uma idéia, um pensamento, um estado de espírito. Tal direito fica restrito à manifestação. Quando se transforma em atos, o problema pode ser mais grave. Se alguém não é simpatizante dos movimentos homossexuais, por exemplo, tem o direito de expressar seu repúdio. No entanto, não há o direito de agredir verbal ou fisicamente homossexuais por causa de sua antipatia.

Defendemos a liberdade de expressão quase irrestrita, limitada, apenas, por manifestações agressivas. Como já foi ressaltado, “o direito de se comunicar livremente conecta-se com a característica da sociabilidade, essencial ao ser humano” (BRANCO, 2009, p. 403). Mesmo que a opinião seja contrária ao que pensa a maioria das pessoas, deve ser respeitada por todos. É obrigação do Estado garantir a liberdade de expressão não apenas nos casos mais simples, mas também nas polêmicas. Se a sociedade espera um ponto de vista e o sujeito possui outro diverso, há um direito garantido de sustentá-lo (o que se faz expressando-o livremente).

A liberdade de expressão, entretanto, não é absoluta. Existem limites que visam a preservação de direitos alheios àquele que se manifesta. A ninguém é dado o direito de expressar palavras ofensivas a outrem ou a segmentos da sociedade. Nesse sentido está a CADH, quando confirma “o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas”. Parece não haver problemas em considerar o direito à honra (ou integridade moral) como objetos de proteção do Estado, pois esta coaduna-se com o princípio da lesão (harm principle), segundo o qual o Estado pode (e deve) interferir em condutas lesivas a terceiros (SIMESTER, SULLIVAN, 2003, pp. 10 e ss.).

A maior controvérsia situa-se na restrição da liberdade de expressão para a proteção penal de bens supraindividuais, como a segurança nacional ou a paz pública. A mesma CADH prevê a necessidade de “proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral pública”. Muita cautela é necessária quando a tutela desses bens é exercida por leis criminais, pois a falta de delimitação desses bens jurídicos pode levar a uma “expansão do direito penal” ou, em outras palavras, à “hipertrofia sistêmica jurídico-criminal”, à construção de um direito penal que “parece a tudo tutelar, e de fato muito pouco consegue defender” (SOUZA, 2007, p. 23).

A proteção penal da paz pública, conforme dispõe o Código Penal, requer duas reflexões fundamentais: (1) qual o grau de perigo de uma conduta que faz referência ao crime?; (2) como ter a certeza de que alguém quer afetar a paz pública ao buscar a discussão sobre uma conduta definida como crime? Para ilustrar a situação, vamos recorrer à polêmica marcha da maconha, realizada há alguns anos no mundo inteiro e que, no Brasil, depara-se com dificuldades jurídicas para sua efetiva realização.

Segundo a organização do evento, a finalidade da marcha é discutir a legalização da maconha no Brasil. Conforme Renato Cinco, um dos organizadores do evento, “o objetivo é debater a necessidade de uma nova legislação sobre a maconha e novas políticas públicas, além de discutir o uso industrial e medicinal da planta”.[3] Ao contrário do que prevê o Código Penal, o dolo dos participantes restringe-se a discutir os motivos de uma conduta ser definida em lei como crime e a possibilidade de sua legalização ou descriminalização.

Discutir a legitimidade de uma lei, inclusive a de drogas, é direito que não pode sofrer restrições. Afinal, o Poder Legislativo é a representação do povo e dos Estados federados, e detentor da capacidade de alterar as leis. Assim, permitir que parte de seus representados manifeste seu descontentamento com uma norma e busque o debate faz parte do exercício da democracia. A liberdade de expressão, no caso da marcha da maconha, é utilizada para contestar um diploma legal emitido pelos representantes do povo. São estes representantes que dizem o que deve ou não ser crime, por isso o debate sempre é válido e legítimo.

3. Princípios fundamentais de direito penal

O direito penal está calcado, fundamentalmente, em dois princípios básicos. O princípio da lesividade legitima apenas a criminalização de condutas que representem lesão efetiva ou real perigo de lesão a um bem jurídico penalmente relevante. O princípio da subsidiariedade é aquele segundo o qual o direito penal pode interferir somente nos conflitos que não possam ser resolvidos por outros meios (jurídicos ou não).

Podemos, ainda, acrescentar um terceiro princípio importante na compreensão de um direito penal garantista. Trata-se do princípio da proporcionalidade, segundo o qual o Estado deve proteger interesses preservando o máximo de liberdade dos cidadãos (GOMES, 2003, pp. 73 e ss.). Daí afirmarmos que os tipos penais devem ocupar-se apenas de condutas realmente graves.

Voltando ao tema liberdade de expressão, parece-nos desproporcional fazer uso do direito penal para coibir manifestações que, aos olhos da lei, sejam aparentemente perigosas. Quando a incitação ou a apologia forem realmente graves, ao ponto de perturbar a segurança e a paz, aplica-se a Lei de Segurança Nacional (lei 7.170/83, artigos 22 e 23). Se as hipóteses não se enquadram na referida lei é porque não apresentam maior periculosidade e, portanto, não devem pertencer à esfera da legislação criminal.

Fazer uso do direito penal para reprimir debates e discussões fere seus princípios fundamentais. Ao contrário daqueles que afirmam ser a marcha da maconha um ato de incitação ou apologia, entendemos que o que se pretende com o evento é discutir a própria criminalização. Os defensores da descriminalização caminham no sentido oposto ao da apologia. Eles querem justamente retirar algumas condutas do rol de crimes por entenderem que as mesmas não apresentam a periculosidade necessária e suficiente para a repressão penal.

É desproporcional vedar a liberdade de expressão para supostamente proteger um bem jurídico difuso sem, ao menos, delimitar o perigo que o evento representa à sociedade. Se o Estado entende que as drogas são prejudiciais, outros instrumentos – não o direito penal – devem ser utilizados em políticas de prevenção e conscientização sobre os malefícios.

CONCLUSÃO

Considerando os princípios norteadores do direito penal num Estado democrático de direito, é muito difícil criminalizar a liberdade de expressão qualquer que sejam seus motivos. Parece-nos que a manifestação de opinião somente pode ser tratada na esfera penal – e com ressalvas – quando a conduta for extremamente ofensiva à integridade de outrem, como é o caso da calúnia, da difamação e da injúria. Mesmo nestes casos, a tendência é de retirarmos a competência penal para a solução dos conflitos em outras esferas jurídicas, especialmente o direito civil, por meio da reparação dos danos.

A paz pública é bem jurídico de complicada definição ao direito penal, o que permite uma dilatação de sua compreensão e consequente abuso da repressão criminal. Assinala SILVEIRA que “a delimitação de como o Direito Penal poderá vir a cuidar de situações abstratas é um dos grandes impasses do momento atual” (2003, p. 66). Não há como definir o momento da consumação do crime nem o dolo do agente.

Quando se pretende discutir a descriminalização de uma conduta está ausente o dolo de colocar em risco a estabilidade social. Ao contrário, quer-se debater a real eficácia da criminalização e os efeitos dos comportamentos reprimidos pelo direito penal. A liberdade de expressão deve ser preservada ao máximo, em nome do Estado democrático de Direito, por ser “um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os tempos” (BRANCO, 2009, p. 402).

BIBLIOGRAFIA:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Vol. 04. São Paulo: Saraiva. 2006.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva. 2009.

GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal, vol. IV. Niterói: Impetus. 2006.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Vol. IX. Rio de Janeiro: Forense. 1958.

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. Vol. 03. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008.

SIMESTER, A. P., SULLIVAN, G. R. Criminal law, theory and doctrine. Oxford, Portland: Hart. 2003.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003.

SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do direito penal e globalização. São Paulo: Quartier Latin. 2007.



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