segunda-feira, 5 de julho de 2010

Editorial da Revista Liberdades, volume 02, publicada em 2010.

BANALIZAÇÃO DE UM JULGAMENTO CRIMINAL

Dificilmente houve um julgamento criminal de tanta repercussão nos últimos anos como o caso envolvendo o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Durante os cinco dias de atividades em plenário, centenas de pessoas aglomeravam-se em volta do fórum de Santana, na capital paulista, com o intuito de presenciar e fazer parte daquele momento, de sentirem o gosto da vingança com a condenação anunciada mesmo antes dos trabalhos iniciados. Ademais, a cobertura dada pela mídia transformou mais um caso de homicídio, entre tantos que ocorrem no país, em verdadeiro espetáculo, com direito à demonização do advogado de defesa.

Inegável o interesse midiático no julgamento de crimes de competência do Tribunal do Júri, eis que, por sua peculiaridade, aguça a curiosidade popular, no entanto, por vezes, ultrapassam seu poder–dever de informar, transformando o plenário em espetáculo público, olvidando-se dos direitos constitucionais que ostenta o acusado, influenciando, inclusive, o dever de imparcialidade dos jurados – cidadãos leigos - no julgamento da causa.

A morte de uma criança inocente, principalmente pelo modo como aconteceu, está longe de ser um fato normal. Ao contrário, a vida humana é bem de enorme valor e deve ser respeitada. Quando acontece um crime de homicídio é natural o sentimento de revolta das pessoas, mas nada justifica as agressões verbais e físicas ao advogado de defesa, que estava ali, naquele momento, a defender um direito constitucional de todos os cidadãos: um julgamento justo dentro do contraditório e com a ampla possibilidade de defesa. O que levou aquela multidão a agredi-lo de forma tão intensa?

Não temos as respostas exatas, no entanto, podemos destacar dois pontos importantes: a falta de formação cidadã e o sensacionalismo utilizado na cobertura dos fatos. Primeiramente, ficou claro que o brasileiro ainda não assimilou os preceitos do Estado Democrático de Direito e não aceitou a condição de que TODOS devem ser tratados com dignidade no processo, por pior que seja a acusação. Em tese, ninguém é melhor ou pior no processo penal, ou seja, todos devem ter o mesmo tratamento digno. Até decisão condenatória com trânsito em julgado o acusado ostenta a condição de inocente e, durante a execução da pena, o então condenado deve ser tratado com respeito aos seus direitos fundamentais.

Mas parece que cada indivíduo insiste em dividir as demais pessoas entre boas e más. As boas são aquelas que não cometem crimes ou, se os praticam, não são tão graves assim. As más, ao contrário, devem apodrecer no fundo de uma cela sem direito a um julgamento justo. Entretanto, quais os critérios para se fazer essa distinção entre bonzinhos e malvados? Um casal que supostamente mata uma criança é pior que um governante que permite a morte de dezenas de cidadãos por falta de atendimento hospitalar? E aquele que desvia milhões das verbas públicas em proveito próprio, aumentando o rombo da dívida pública e impedindo investimentos na área social?

Como a população está condicionada a assimilar aquilo que a mídia despeja, sem refletir a respeito, Nardoni e Jatobá foram alçados à condição de seres indignos. Não poderiam sequer pensar em ter um advogado constituído, pois deveriam ser prontamente condenados e, se possível, executados em praça pública. O mais assustador é que, no mais das vezes, as impressões veiculadas pelos meios de comunicação proporcionam maior efeito na convicção dos jurados do que propriamente os elementos probatórios trazidos em plenário.

A falta do exercício da cidadania, aliada ao exagero injustificável da imprensa, provoca resultados prejudiciais ao processo democrático. Não se vê o advogado como agente fundamental para o funcionamento da Justiça, com a mesma importância do juiz e do promotor. Como já bem asseverou Francesco Carnelutti em As misérias do Processo Penal:
A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado. As pessoas não compreendem aquilo que de resto nem os juristas entendem; e riem, zombam e escarnecem. Não é um mister, que goza da simpatia do público, ainda do Cirineu. As razões, pelas quais a advocacia é objeto, no campo literário e também no campo litúrgico, de uma difundida antipatia, não são outras senão estas[1].
O próprio direito penal, em diversas situações, passa de instrumento de limitação do poder punitivo do Estado à ferramenta de vingança. É esta a idéia passada diariamente pela mídia sensacionalista.

Há muito o direito penal e o processo penal deveriam ser expostos ao público leigo como promotores dos valores essenciais à manutenção da democracia e da estabilidade social. Não é possível que os ideais do Iluminismo, que foram conquistados ao longo de séculos, sejam jogados no lixo pela falta de educação e cultura da população e pela ganância da mídia, que fatura milhões com o sensacionalismo barato. Os crimes devem ser noticiados da forma mais sensata, poupando os acusados da exposição desnecessária e não os julgando sem o devido processo legal. Não cabe à mídia (nem a alguns membros do Ministério Público!) julgar os acusados de um crime, esta é função do magistrado ou dos jurados. O ideal seria o processo se desenvolver apenas nos autos e somente ali as partes envolvidas poderiam se manifestar.

Desenvolver a cidadania e promover o Estado Democrático de Direito é tarefa de todos: Estado, mídia, escola, família e todas as demais instituições sociais. Com certeza, uma população formada por pessoas conscientes, capazes de viverem com autonomia, é um grande passo para uma sociedade mais harmoniosa, inclusive com menos crimes. Sem cidadania, os conflitos continuarão a acontecer e não haverá super-herói capaz de nos proteger dos vilões eleitos pela mídia.

São Paulo, 15 de maio de 2010.

João Paulo Orsini Martinelli
Coordenador-adjunto do Departamento de Internet do IBCCRIM

Regina Cirino Alves Ferreira
Coordenadora-adjunta do Departamento de Internet do IBCCRIM

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